São deliciosas as memórias inacabadas e bagunçadinhas do pernambucano Cícero Dias, reveladoras de um pedaço do mundão que correu – ele que detestava passaportes – numa linda edição da Cosacnaify (2011). Como flertou ou ao menos soube conviver com tão diversos “ismos”(por exemplo, regional, surreal ou cub), foi perseguido e até preso por outros (naz ou getul), Cícero aparece aqui como um contador despretensioso, no ritmo de quem conversa na sala, de histórias e palpites acumulados nas épocas e lugares extraordinários que quis ou teve que atravessar. Há muito sofrimento, contrabalançado por igual graça, como nesse trecho: “Lá fui eu, à tardinha, para a rue des Grands-Augustins, ateliê de Picasso. Ele vivia intrigado, colocava ou não colocava cor em Guernica. Interpelava muitos de seus amigos a esse respeito. Por sinal, encontrei-o com Chagall, com quem ele discutia, em frente à Guernica: cor ou não? O mestre russo coçava a cabeça e dizia: Deixa Guernica como tu fizeste. Deixa, não toca, deixa como está. O mestre russo se balançava como que dançando. Na saída, Picasso acompanhou Chagall até a rua. De volta ao ateliê, sentimos que estava aliviado, confortado. Ninguém melhor do que Chagall para opinar. Guernica ficou com seu primeiro bem-estar, forte, bem forte” (p. 116-7).
Já nas guardas da capa do livro, a gente descobre o figurino arretado que Cícero fez para o balé “Maracatu de Chico Rei”, com música de Francisco Mignone, argumento de Mário de Andrade e coreografia de Maria Olenewa. Ao longo da obra, o pintor conta como fez o cenário e os figurinos de outro balé, “Jurupari”, com música de Villa-Lobos, dançado pelo russo Serge Lifar, nos anos 1930. Seus amigos Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, e tantos outros, andam por essas páginas, ambientadas sobretudo nos engenhos de Pernambuco, em Recife, no Rio de Janeiro, em Lisboa e em Paris, com grandes e alternados saltos de décadas e personagens. É uma obra que ajuda a ver um pouco mais o mundo, e ele começa, claro, no Recife … (DV).