Acordo em meio a gritos e barulho de helicópteros. Ainda era madrugada quando a Tropa de Choque da PM pôs em marcha a sua operação de reintegração de posse do prédio ocupado da reitoria da USP. O sol sequer se esboçava no horizonte mas o meu quarto no Conjunto Residencial da USP (CRUSP) já se encontrava completamente iluminado. Ao abrir a janela, me deparo com um helicóptero da PM que, sobrevoando a área próxima aos prédios de moradia universitária, disparava um forte rojão de luz em minha direção. Ainda um pouco desnorteado, localizo outros dois, nesse primeiro momento, para depois descobrir por relatos de outros moradores que, ao total, quatro dessas máquinas haviam sido deslocadas para a operação em curso.
Ao barulho dos helicópteros e das pessoas gritando, logo se somariam os estalos causados por duas bombas de gás lacrimogênio lançadas no principal corredor de ligação entre os blocos de moradia. Uma terceira bomba explodiria minutos depois e uma nova onda de gritos de pavor ecoaria em meio aos moradores em seus apartamentos e aqueles que haviam descido para saber o que estava acontecendo. Vídeos postados na internet conseguem demonstrar a grande névoa que se alastrou por todo o CRUSP que, junto à escuridão do dia nem amanhecera, impedia a visão e nos contaminavam os olhos.
Eu moro no primeiro andar de um dos blocos e a fumaça já havia invadido o meu apartamento pela janela da sala, permanentemente aberta no verão. Situação ainda pior se observava no térreo de um dos blocos, o que abriga as estudantes mães-solteiras e suas crianças. Cerca de 60 crianças que vivem atualmente nas residências estudantis foram, naquela manhã de terça-feira, despertadas ao som de bombas e helicópteros. O mais alarmante é o fato de que a fumaça lançada pela tropa de choque ao alcançar o meu apartamento no primeiro andar já havia se alastrado pelo térreo, onde moram as crianças.
Ainda um pouco confuso, subo pelas escadas de incêndio ao sexto andar do prédio de onde eu consigo observar o que estava acontecendo: centenas de policias obstruíam todas as saídas de acesso ao CRUSP e, em algumas delas, com a cavalaria. Uma moradora gritava insistentemente “Choque no CRUSP”, na tentativa de acordar os demais moradores, como se todos ali já não estivéssemos despertos. Estávamos cercados.
Como muitos outros, desço ao corredor de ligação entre os blocos e vou em direção à principal saída de acesso à reitoria, próxima ao bandejão central. Alguns estudantes já lá estava e buscavam forçar passagem por entre a tropa de choque quando um dos policiais dispara. Outros dois seguem o seu exemplo e também disparam balas de borracha, não tendo por alvo os estudantes, ao que me pareceu, mas o chão onde demarcavam a linha até onde os moradores podiam chegar. Isso não impediu, no entanto, de que uma moradora fosse atingida nas costas. Nesse instante, um coronel ao fundo ordena aos policiais que parem de atirar. As suas palavras foram “Aqui não! Não reajam, não atirem. Estamos na USP”.
Pelas palavras do coronel pareceria que estávamos tendo um tratamento especial por parte da tropa de choque, que tem por conduta rotineira a repressão pela violência e o desprezo pela vida humana, confirmado pelos altos índices de assassinatos cometidos pelas tropas policiais em serviço no Brasil, dentre os piores do mundo. Mas se esse era o tratamento especial das tropas treinadas em direitos humanos, segundo atestam as autoridades, como justificar as bombas dentro das moradias estudantis atingindo até mesmo crianças, e o cerco que armaram entorno aos prédios impedindo o ir-e-vir livre dos moradores e trabalhadores, os que chegavam para trabalhar no restaurante central e os que, como estudante, cumprem a dupla jornada de trabalho e estudos, e que logo se dirigiriam aos pontos de ônibus?
A questão aqui não é julgar quão benevolentes foram ou não as tropas de choque, pois para nós, moradores, fica patente a violação de muitos dos nossos direitos, enquanto estudantes e moradores, ou mesmo como cidadãos. O ponto com que se preocupar, no meu entender, é como os mesmos policiais podem vir a público dizendo que a operação de reintegração de pose foi pacífica e sem uso de violência quando nossos olhos ainda ardem sob o efeito dos gases que nos atingiram dentro do nossos apartamentos. As pessoas que tossiam, com maior atenção para as crianças, ou os dois moradores do CRUSP detidos junto à operação por tentarem romper o cordão de isolamento imposto pelos policiais na área que corresponderia ao quintal da nossa casa, certamente não podem corroborar com o que dizem as autoridades policiais.
Aceitar que essa foi uma operação “pacífica” da PM, o “aqui não”, nos dizeres dos coronel, nos leva fatalmente a considerar a existência de um outro contexto, onde o atributo “pacífico” não pode ser atribuído nem mesmo pelas forças policias. Um cenário assustador onde impera o “aqui sim” oficial.
Leonardo de Cássio Rodarte é estudante de Relações Internacionais e morador do CRUSP.