UM ENFOQUE VERGONHOSO DO DEBATE MIGRATÓRIO (Nota sobre editorial do Estadão de 26/8)

(Publicado em 26/8/2014 na nossa página do Facebook)

O jornal O Estado de S. Paulo publicou hoje (26/8/2014) lamentável editorial sobre a situação dos imigrantes no Abrigo do Glicério, na cidade de São Paulo, sob o título: “Uma situação vergonhosa”. Apontando as graves condições em que tais pessoas se encontram, o jornal, ao expor sua visão sobre migração – aparentemente ancorada no pior do senso-comum – comete outras tantas violações de direitos humanos, desinformando e deseducando leitores com um texto caduco sobre essa complexa questão.

Dois problemas saltam à vista: a redução simplista da problemática à um disputismo entre PT e PSDB nas esferas municipal, estadual e federal; e a abordagem sobre migração que tende a uma solução não mais correspondente com a realidade do século XXI.

O governo do estado de São Paulo não está – e jamais poderia estar – sendo arrastado para um problema criado por “correligionários do prefeito Fernando Haddad”. Nem “correligionários”, nem prefeito da cidade teriam capacidade de criar tamanho problema, ou de resolvê-lo sozinhos. Tampouco poderia o estado de São Paulo passar ao largo da questão sem responsabilizar-se em parte pelo assunto.

Um rápido panorama ajuda a mostrar as nuances da questão migratória. A migração pode gerar problemas quando o Estado não possui políticas adequadas para tratar o fenômeno. As que o Brasil aplica, infelizmente, são caóticas. Temos um Estatuto do Estrangeiro da época da ditadura e que se pauta pela visão do imigrante como ameaça à “segurança nacional”. Hoje, tal Estatuto é em grande parte incompatível com a Constituição Federal de 1988 e com diversos tratados internacionais de direitos humanos assinados e ratificados pelo Brasil.

As lacunas e incompatibilidades da legislação são resolvidas por resoluções (não tem status de lei) do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), cuja política interna (Política Nacional de Imigração e Proteção Ao(a) Trabalhador(a) Migrante) é mais atualizada e orientada pela garantia dos direitos humanos. Porém, a atuação do órgão é altamente discricionária, e algumas das soluções encontradas – como a ação conjunta com o Conselho Nacional de Refugiados (CONARE) de aceitar pedidos de refúgio como forma de conceder carteiras de trabalho – estão distantes de serem as mais desejáveis, pois não resolvem o problema.

Assim, a conduta do país em relação à migração é um verdadeiro mosaico que se reflete nas atitudes descompassadas entre as unidades federativas, como o “governo petista” do Acre mandando para São Paulo os imigrantes que lá estavam. Frise-se: sem nenhum aviso prévio. Mais provável que a tese do complô petista arquitetado contra o estado de São Paulo levantada pelo jornal, o que existe é uma imensa desarticulação de posições dentro do Estado brasileiro. Muito da negligência frente às condições de vida de significativa parcela da população migrante explica-se, em parte, pela ausência de direitos civis e políticos, especialmente o direito ao voto, situação vergonhosa se comparado a seus vizinhos latinoamericanos, onde o direito a votar e ser votado é garantido em alguma instância governativa. Somam-se a isso atitudes desinformadas e preconceituosas que fazem da imigração um não-tema na política nacional.

A solução sugerida pelo editorial é a do fechamento das fronteiras, como fazem os “países prudentes”. É interessante ponderar sobre quais seriam os países a que o jornal se refere. Seriam aqueles que, ao dificultarem o ingresso, deixam que as pessoas padeçam em barcas a meio caminho do país? Os mesmos que, com políticas restritivas, incentivam o aparecimento de coiotes, rotas clandestinas e, quando da entrada no território nacional, deixam os imigrantes na marginalidade, expondo-os ao trabalho escravo e condições precárias?

Em pleno contexto de intensificação de fluxos migratórios, é lamentável a persistência da lógica de que as pessoas pararão de migrar e buscar melhores condições de vida caso o país de destino se negue a recebê-las. A realidade brasileira, e de muitos outros países, hoje nega essa possibilidade. Apesar das contradições de suas posturas quanto à imigração, da precariedade de condições da vinda e permanência no país, as pessoas ainda insistem em migrar. Mais além: o próprio fenômeno migratório, a despeito de todas as catástrofes, crises ou desastres que o motivem é, em si, um direito que transcende todas essas adversidades, pois mesmo em um mundo livre de reveses as migrações seguiriam sendo legítimas. E é justamente dentro desse paradigma que nos salvamos da falsa noção de “imigrante ilegal”. Em outras palavras, o termo classifica equivocadamente a passagem de fronteiras como passível de sanção criminal. Assim, sendo a migração um direito, é dever do Estado “regularizar” o migrante, e não criminalizá-lo.

Portanto, a solução contemporânea não inclui mais o fechamento das fronteiras – tarefa, aliás, impossível e dispendiosa para um país das dimensões do Brasil, que as têm muitas vezes distantes e pouco povoadas. Também não inclui a restrição dos direitos garantidos aos imigrantes, o que só intensifica sua vulnerabilidade. A solução está na integração cultural, política e socioeconômica dessa população, assim como já se fez com inúmeras outras nacionalidades na própria história do Brasil.

Muito além da questão da mão-de-obra contribuir para o crescimento do país, não há razões para impor barreiras à influência cultural que os diversos povos proporcionam senão por um ufanismo ilusório, dado que o Brasil foi constituído por diversos povos. O reconhecimento e acolhimento de outras culturas é um passo importante na construção de uma identidade tolerante, sincrética e plural, especialmente no âmbito da América Latina e da integração regional.

A solução deve incluir, também, a aprovação da nova Lei de Migrações construída, com participação da sociedade civil, pela Comissão de Especialistas do Ministério da Justiça que oferecerá o suporte jurídico para uma nova política nacional que respeite os direitos humanos dos imigrantes.

Nesse campo, as sugestões de uma política migratória mais progressista geralmente trazem à tona o mito da “invasão de estrangeiros”, o qual, porém, não se sustenta. Segundo as estimativas mais altas, o Brasil ainda continuaria a ser um país de emigração, e os imigrantes aqui instalados não ultrapassariam 0,5% da população nacional. Caem por terra as perspectivas de que o SUS e as escolas congestionariam ainda mais com a presença dos imigrantes (ver “Criação de lei de migrações é dívida histórica do Brasil” http://www.cartacapital.com.br/sociedade/divida-historica-uma-lei-de-migracoes-para-o-brasil-9419.html).

A restritividade da legislação migratória brasileira, combinada com a adoção de políticas desarticuladas agravam a situação atual. O cerne do problema é justamente a falta de uma política clara e coerente que dê conta da realidade. Para tanto, é necessária a articulação das diferentes esferas do poder – do âmbito municipal, estadual e federal – pois, sendo a imigração algo inerentemente transversal, nenhuma das partes pode se dar ao luxo de se eximir ou de tomar posições unilaterais sobre a garantia de efetivação dos direitos humanos dos migrantes.

O resultado da desarticulação são as situações degradantes como a que vemos no Glicério. Sem dúvida, a prefeitura tem a sua parcela de responsabilidade e deve esclarecimentos sobre as condições do abrigo e ao atraso na inauguração do Centro de Referência e Acolhida ao Migrante (CRAI-SP). Mas o governo estadual também tem sua responsabilidade – aliás, reconhecida oficialmente em maio deste ano na Conferência Nacional de Migrações e Refúgio (COMIGRAR) – já que a posição do Estado brasileiro como um todo deve ser de proteção ao migrante, e não dependente das visões subjetivas de um governo ou de outro. Antes de ser mera negligência do governo municipal, as atuais condições do abrigo são, na verdade, sintomas de um problema estrutural muito maior, a saber, a desigual delegação de competências entre os poderes federal, estadual, municipal.

Considerando tudo o que foi exposto, nada mais raso do que a opinião de que tentativas de integração dos imigrantes seriam “compaixão” ou mero jogo partidário, tal como sugerido pelo editorial. Longe de compaixão, caridade ou humanitarismo retórico, trata-se do dever estatal da garantia de direitos e da mudança da visão do imigrante como intruso ou ameaça à estabilidade do país. O imigrante é, sim, aquele que vem legitimamente buscar condições melhores de vida e que tem muito a contribuir na construção do país, de diferentes formas, inclusive culturalmente. Vale ressaltar, contudo, que embora os compromissos assumidos pelo Brasil via tratados de direito humanos sejam uma responsabilidade essencialmente estatal, é inegável o papel central da gestão dos órgãos que o compõem para esse dever, uma vez que as políticas públicas voltadas a essa população, concretizadoras dos direitos expressos no papel, dependem da agenda e vontade política dos que administram o aparato público. Se houver vontade política, a situação atual pode se transformar numa oportunidade para mostrar que é viável e desejável uma nova forma de abordar a mobilidade humana no cenário internacional, gerando um paradigma que se contraponha à guinada xenófoba que alguns “governos prudentes” vêm realizando na Europa.

Coletivo de extensão universitária Educar para o Mundo

Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo

Leia na íntegra o editorial do Estadão: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,uma-situacao-vergonhosa-imp-,1549623

Uma Análise mais Profunda da Declaração da Professora Maristela Basso

O Educar para o Mundo, grupo de extensão universitário que trabalha com educação, cultura e Direitos Humanos, principalmente no que tange o fenômeno da imigração, reitera a manifestação de repúdio do Centro Acadêmico Guimarães Rosa, do qual a maioria de nós somos sócios, às declarações feitas pela Professora de Direito Internacional da USP, Maristela Basso, ao telejornal da TV Cultura. A nota segue abaixo, seguida de nossas observações.

Nota de repúdio às declarações da Profª. Maristela Basso sobre a Bolívia
São Paulo, 31 de agosto de 2013

O Centro Acadêmico Guimarães Rosa (Relações Internacionais – USP) vem a público manifestar seu amplo repúdio e indignação em relação às declarações da Professora de Direito Internacional da USP, Maristela Basso, sobre a Bolívia e o povo boliviano. Comentarista política do telejornal da TV Cultura, a docente disse no programa do dia 29/8/2013:

“A Bolívia é insignificante em todas as perspectivas, (…) nós não temos nenhuma relação estratégica com a Bolívia, nós não temos nenhum interesse comercial com a Bolívia, os brasileiros não querem ir para a Bolívia, os bolivianos que vêm de lá e vêm tentando uma vida melhor aqui não contribuem para o desenvolvimento tecnológico, cultural, social, desenvolvimentista do Brasil.”

O fato de a Bolívia supostamente não ter relevância econômico-comercial para o Brasil e ser um país pobre não a torna menos merecedora de nosso mais profundo respeito. Da mesma forma, os imigrantes bolivianos que vêm ao Brasil “tentar uma vida melhor” e que de maneira geral sofrem com as intempéries do trabalho precário e da subcidadania merecem no mínimo a nossa solidariedade. 

Respeito e solidariedade foram conceitos que passaram longe da declaração professora Maristela Basso. É estarrecedora a tranquilidade e a naturalidade com a qual ela fez o seu comentário explicitamente degradante e xenofóbico em relação a um país vizinho.

A fala da professora expressa o mesmo desprezo que um brasileiro ou qualquer outro latino-americano poderia sofrer por parte dos países “desenvolvidos” – muitos dos quais, não por coincidência, nossos colonizadores. Desconheceria a docente que nós também compartilhamos de um passado colonial? Ou talvez isso simplesmente não importe quando supostamente não existem “interesses estratégicos e comerciais”, o que nos faz pensar sobre o lugar que ocupam as temáticas de paz e direitos humanos nos estudos e preocupações da professora.

O fato é que nós temos muito mais a ver com a Bolívia do que quer dar a entender a fala de Maristela Basso. Compartilhamos com este país vizinho e o resto da América Latina de um passado de brutal exploração. Uma exploração que começou com a colonização, mas que não acabou com ela e cujos efeitos ainda tentamos superar. Exploração que ainda predomina na mente colonial dos “países desenvolvidos”, ao inferiorizar tanto os governos quanto a população latino-americanos, incluindo o Brasil. Não podemos nos tornar iguais àqueles que nos subjugam.

Há razões históricas para a Bolívia ser pobre como é hoje em dia e para haver tantos imigrantes bolivianos se arriscando no Brasil. São as mesmas razões pelas quais em toda América Latina, incluindo o Brasil – como se sabe ainda um dos países mais desiguais do mundo – há tanta pobreza. Uma delas certamente é a obra histórica da uma elite que descolonizou o continente em proveito próprio, mas jamais para emancipar de fato o seu país e o seu povo. Elite que, afinal, pensava como o colonizador. E que falava como Maristela Basso fala. 

É, portanto, essa mentalidade negligente com o nosso passado e que subsidia com naturalidade a xenofobia o que de fato não contribui, em nenhuma perspectiva, para o nosso desenvolvimento. E é contra essa mentalidade – tão bem representada pela lamentável fala de Maristela Basso – que apresentamos todo nosso repúdio.

Com a mesma determinação, nos solidarizamos com a Bolívia, o povo boliviano e os imigrantes que aqui vivem e convidamos a todas as entidades interessadas a assinar e divulgar essa nota.
Atenciosamente,

Centro Acadêmico Guimarães Rosa

Reafirmamos as considerações feitas pela nota de repúdio acima explicitada e manifestamos igual repúdio aos comentários da docente. Denunciamos e reforçamos também outro aspecto gritantemente xenófobo e ignorante de suas declarações que dizem respeito aos imigrantes bolivianos no Brasil, expresso na seguinte fala:

“A Bolívia é insignificante em todas as perspectivas, (…) os bolivianos que vêm de lá e vêm tentando uma vida melhor aqui não contribuem para o desenvolvimento tecnológico, cultural, social, desenvolvimentista do Brasil”.

A docente revela-se extremamente ignorante no que tange a vida dos imigrantes bolivianos no Brasil e, mais especificamente, em São Paulo. Ignora a legislação igualmente xenófoba e restritiva que rege a vida dos imigrantes no país, em todos seus aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais. A noção falsa de que os bolivianos não contribuem para o desenvolvimento do Brasil deve-se a uma falha brasileira em seu tratamento para com os imigrantes, e não a uma suposta incapacidade ou inferioridade dos cidadãos do país vizinho (e também do nosso).

O Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/80), ainda vigente no Brasil, limita a atuação dos imigrantes em todos os aspectos referidos pela Prof. Maristela. Liberdades e direitos considerados essenciais para o livre desenvolvimento das capacidades humanas estão restritos aos nacionais, impedindo uma participação efetiva dos imigrantes na sociedade brasileira. A relevância dos bolivianos nesse quadro é elevada, considerando que compõem uma parcela significativa dos imigrantes, principalmente em São Paulo.

A Nona Conferência Sul-Americana de Migrações, do qual o Brasil e a Bolívia tomaram parte, defendeu entre seus princípios que “a pessoa migrante é um sujeito do Direito, protagonista central das políticas migratórias e em consequência um ator social e político com capacidade transformadora e responsabilidades na integralidade do espaço migratório no qual se desenvolve” e que “as pessoas migrantes, em seu processo de inserção e integração, bem como de vínculo, se transformam em atores fundamentais do desenvolvimento humano, econômico, cultural, social e político”.

Pensemos na condição dos bolivianos no Brasil: o Estatuto impede qualquer forma de manifestação política aos imigrantes, uma das prerrogativas básicas de sociedades verdadeiramente democráticas. Impossibilitados de comunicar suas demandas, os imigrantes são condenados a uma inércia política que implica consequências graves a sua condição social, humana, cultural e econômica. Nota-se claramente que o Brasil não provê das condições necessárias para possibilitar aos imigrantes um protagonismo político e/ou social e, consequentemente, um papel transformador na sociedade brasileira. As críticas da Prof.ª Maristela estão claramente mal direcionadas.

Na esperança de encontrarem condições melhores de vida, muitos bolivianos migram para o Brasil e para São Paulo e enfrentam inúmeras frustrações. As condições degradantes de trabalho, muitas vezes semelhantes às de escravidão, constituem cena comum da vida de muitos bolivianos no Brasil e revelam a negligência do país perante a sua obrigação em proteger os direitos humanos, exaustivamente reafirmados em diversos tratados internacionais, muitos dos quais são ratificados pelo Brasil.

Os poucos direitos juridicamente garantidos aos imigrantes no Brasil são logo descumpridos devido ao forte sentimento de xenofobia e preconceito que permeia as relações entre os nacionais e os bolivianos. Estigmatizados com uma origem pobre, inferior, “indígena” e, ironicamente, latino-americana; assim como nós, brasileiros, ainda somos tratados em vários países; os bolivianos são relegados à condição de subcidadãos indignos de apoio e merecedores de, quando muito, práticas assistencialistas e nada mais.

Ainda que enfrentem a opressão jurídica e institucional do Estado, bem como a xenofobia, os bolivianos e outros imigrantes constituem uma fonte de riqueza cultural para o país e juntam esforços para lutar por seus direitos. Não apenas por meio de associações e de intervenções culturais, como no caso dos eventos na Praça Kantuta em São Paulo, mas também por meio de seus costumes, de sua língua, artesanato e ocupação da cidade, os bolivianos nos aproximam do espanhol, das origens indígenas, da realidade latino-americana e de tudo que tanto nos custa entender e aceitar em nossa história.

Declarações como a da professora incentivam ainda mais a discriminação com dos imigrantes e a xenofobia, além de reforçar a visão hostil à imigração, que vem ganhando força após o anúncio do programa Mais Médicos. O Brasil não pode tornar sua receptividade seletiva, recebendo bem só aqueles que, numa concepção preconceituosa e utilitarista, acreditam “contribuir para o desenvolvimento do país.” Devemos lembrar de todo o preconceito que brasileiros sofreram no exterior para não cometermosas mesmas injustiças que nos atingiram e ainda nos atingem lá fora.

Coletivo Educar para o Mundo de Extensão Popular Universitária

Carta do Fórum Social pelos Direitos Humanos e Integração dos Migrantes em defesa da vinda de médicos cubanos e demais estrangeiros ao Brasil

Republicamos abaixo post do site do Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante/CDHIC que, assim como o Educar para o Mundo, compõe o referido Fórum Social pelos Direitos Humanos e Integração dos Migrantes no Brasil. 

Em reunião realizada no último dia 27/07, o Fórum Social pelos Direitos Humanos e Integração dos Migrantes no Brasil, coletivo composto por mais de 30 organizações entre associações de imigrantes, centrais sindicais, grupos culturais e centros de defesa dos direitos dos imigrantes, aprovou a publicação de uma Carta em apoio ao ingresso de médicos nacionais de outros países para atuação profissional no Brasil.

Na Carta, o Fórum critica a posição de entidades corporativas como Conselho Federal de Medicina (CFM), Associação Nacional de Médicos Residentes (ANMR), a Federação Nacional dos Médicos e a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

Confira trechos:

“Dada esta realidade, não procedem as críticas de que os médicos estrangeiros causariam uma concorrência desleal, roubando as vagas dos médicos brasileiros – até porque, prioritariamente, as vagas serão oferecidas a esses últimos. Nunca foi cogitado, nem antes do lançamento oficial do programa, preterir ou desprezar brasileiros. Nesse medo reside a primeira das faces da xenofobia presentes – conscientemente ou não – nas mobilizações contra a vinda de estrangeiros: a ideia de que “eles” vêm para roubar “nossos” empregos. Ideia semelhante àquela de países que historicamente recebem grande fluxos migratórios e que usam os imigrantes como bodes expiatórios de suas crises. Tal posição é frequentemente criticada por países em desenvolvimento, não se excluindo o povo brasileiro, que gaba-se do mito de sua suposta hospitalidade exemplar”.

No final, o documento manifesta solidariedade aos médicos cubanos e, por extensão, a todos os profissionais imigrantes impedidos de exercer sua profissão por processos de revalidação preconceituosos, feitos deliberadamente com o intuito de excluir estrangeiros. “Também repudiamos as declarações xenófobas das diversas entidades e protestos de rua que se opuseram, de maneira extremamente intolerante e desinformada, à vinda desses profissionais ao país”

A reunião foi realizada na sede do CDHIC (Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante) e teve a participação de lideranças e representantes das entidades. O Fórum irá realizar uma série de atividades a partir de Agosto, em torno das condições de vida dos imigrantes que vivem no Brasil e sobre a revisão da legislação migratória brasileira. Em breve será divulgado o calendário de ações que inclui uma Audiência Pública, Plenárias e Pré-Conferências no marco da Conferência Municipal de Políticas para Migrantes e a Conferência Nacional de Migração e Refúgio, previstas para novembro de 2013 e março de 2014, respectivamente.

Leia o documento na íntegra: Carta de Apoio à Vinda de Médicos para o Brasil – Fórum Social pelos Direitos Humanos e Integração dos Migrantes no Brasil

(Link para o post original: http://www.cdhic.org.br/?p=1244)

60 anos de ACNUR: Perspectivas de futuro

Alusiva ao aniversário da Agência da ONU para os refugiados, esta obra reúne excelentes artigos sobre a temática do refúgio. O primeiro, do Professor André de Carvalho Ramos, esclarece a diferença entre asilo e refúgio, comentando, inclusive, o polêmico Caso Battisti. Há trabalhos sobre os haitianos no Brasil, sobre o funcionamento do CONARE e outros tantos temas fundamentais da atualidade. O livro foi organizado pelos Professores Guilherme Assis de Almeida, Gilberto Rodrigues e André de Carvalho Ramos. Leia aqui o texto integral do livro 60 anos de ACNUR.

As revoltas no mundo árabe: um desejo de Ocidente? por Alain Badiou

A Revue des Livres reproduziu, hoje, um extrato do livro Le réveil de l’histoire, de Alain Badiou, que começa assim: “no fundo, nossos governantes e nossas mídias dominantes propuseram  uma interpretação simplória das revoltas no mundo árabe: o que lá se expressou é o que podemos chamar um desejo de Ocidente. Um desejo de ‘beneficiar-se’ de tudo isto do qual nós, sonolentos satisfeitos dos países ricos, já ‘nos beneficiamos’. Um desejo de ser, enfim, integrados ao ‘mundo civilizado’ que os Ocidentais, incorrigíveis descendentes de colonos racistas,  acham-se tão certos de representar a ponto de organizarem ‘tribunais’ internacionais para julgar quem afirma outros valores – sem dúvida, por vezes, realmente pouco recomendáveis –, ou quem apenas simula turbar a pesada tutela da ‘comunidade internacional’ – certamente, por vezes, de modo puramente interesseiro. Assim fazendo, os Ocidentais, sob o manto do Direito, esquecem que seu pretenso poder de definir ‘o Bem’ não é mais do que o nome modernizado do intervencionismo imperial”. Leia aqui as páginas 76 a 81 do livro, em francês.

Imigração na gaveta, de Claudia Antunes

Na Folha de S. Paulo de hoje

RIO DE JANEIRO – Dorme em alguma gaveta do governo federal uma proposta de Política Nacional de Imigração e Proteção ao Trabalhador Migrante que foi posta em consulta pública em 2010. O debate voltou à tona com o afluxo recente de haitianos, um dos temas que seriam tratados ontem na visita de Dilma a Porto Príncipe. No caso dos haitianos, o governo improvisou uma solução com vistos especiais de trabalho, mas ainda não deu conta dos que já estavam a caminho e chegaram à Amazônia sem documentos. Tendo pago os coiotes que os trouxeram, eles resistem a voltar para o país mais pobre do hemisfério.

Elaborada pelo Conselho Nacional de Imigração, ligado ao Ministério do Trabalho, a proposta lançada há dois anos é coerente com a convenção da ONU sobre o tema. À espera de ratificação pelo Congresso, o texto internacional baseia-se na defesa da livre circulação de trabalhadores. Hoje, o assunto é regido no Brasil pelo Estatuto do Estrangeiro, de 1980, que proíbe, por exemplo, que estrangeiros se envolvam em atividade política, incluindo a difusão de programas partidários do seu país de origem. Um projeto de lei para substituí-lo tramita no Legislativo, mas é considerado restritivo por defensores dos direitos dos imigrantes.

Segundo especialistas como Deisy Ventura, da USP, o assunto não sai do limbo porque há divergências significativas. A visão mais tolerante está em confronto com outras que privilegiam enfoques de segurança ou de mercado, incluindo a que advoga a seleção só de profissionais qualificados. O problema é que, pelo peso crescente em sua região, o Brasil tende a atrair imigrantes pobres em maior número, ainda que comecem a surgir candidatos fugidos da crise no sul da Europa. É preciso buscar meios de conciliar os dois movimentos, fazendo jus à tradição de acolhimento que o país vende como parte do seu “poder brando”.

Claudia Antunes, jornalista carioca, formada em jornalismo pela UFRJ, está na Folha desde 2000. Foi coordenadora de redação da Sucursal do Rio (2000-2005), editora de “Mundo” (2006-2009) e atualmente é repórter especial do jornal. Antes, trabalhou por 13 anos no “Jornal do Brasil”, onde foi editora de “Internacional”. Entre 2005 e 2006, foi bolsista da Fundação Nieman para o Jornalismo, na Universidade Harvard.

Fronteira social e fronteira de serviço, de Omar Ribeiro Thomaz e Sebastião Nascimento

Do Estado de S. Paulo, 28/1/2012 O governo brasileiro celebrou o segundo aniversário do devastador terremoto haitiano com o anúncio de medidas ainda mais severas para coibir a já difícil entrada de haitianos no País. Criando um perverso precedente, é a primeira vez, desde a 2ª Guerra, que se impede a uma nacionalidade específica solicitar a proteção do refúgio. Canais oficiais e semioficiais de divulgação foram mobilizados para reempacotar medidas que vinham sendo preparadas para reforçar a seletividade migratória no Brasil como se fossem uma resposta imediata à vexatória cobertura da imprensa internacional sobre a situação calamitosa dos haitianos impedidos de deixar a região fronteiriça. Dentro ou fora do País, poucos acreditaram na narrativa oficial que apresentava restrições arbitrárias como se de concessões generosas se tratasse.

O tumulto pela entrada de pouco mais que 3.500 haitianos no País ao longo dos últimos dois anos é, no mínimo, caricatural, tendo em vista não somente o volume dezenas de vezes maior de imigrantes europeus no mesmo período, mas também a dimensão centenas de vezes mais ampla da diáspora haitiana em outros países da América Latina. O Brasil nunca foi e segue não sendo destino preferencial de uma migração cuja dinâmica o Itamaraty e outros ministérios insistem em ignorar. Há por volta de 3 milhões e meio de haitianos espalhados por dezenas de países em três continentes, todos abrigando comunidades consideravelmente maiores e infinitamente mais bem acolhidas que no Brasil. Logo após o terremoto, apoiando-se numa opinião pública francamente solidária, o governo brasileiro havia anunciado projetos ambiciosos de intercâmbio e formação de quadros haitianos em áreas estratégicas como a saúde e a educação, para os quais dotações orçamentárias foram rapidamente aprovadas, mas cuja execução nunca aconteceu. Em fevereiro de 2010, com grande fanfarra se anunciou que o Brasil ofereceria pelo menos 500 bolsas a estudantes da rede universitária haitiana, atingida de modo particularmente devastador pelo terremoto. Por todo o Brasil, universidades se ofereceram para recebê-los. Era crucial que viessem rapidamente, pois suas faculdades estavam em ruínas, seus estudos paralisados e a continuidade de sua formação seria decisiva para a reconstrução. Numa irônica coincidência, foram também cerca de 3.500 os estudantes que se candidataram, no que teria sido o maior programa de intercâmbio internacional da história da educação brasileira. Somente mais de um ano e meio após a tragédia é que, a duras penas, foi possível trazer, dos 500 anunciados, não mais que 80 estudantes, alguns dos quais já tiveram sua bolsa cancelada ou limitada, sem que o Ministério da Educação tenha sido capaz de oferecer quaisquer garantias de continuidade do programa. Também na área da saúde, havia sido anunciada a construção de dez Unidades de Pronto Atendimento em Porto Príncipe, dotadas de anexos para a formação de agentes comunitários. Deveriam entrar em funcionamento ainda em 2010. Nenhuma sequer foi construída e apenas uma equipe haitiana formada por um médico e duas enfermeiras esforça-se por atuar sem sede definida. Iniciativas como essas se viram transformadas – não no Haiti, mas em Brasília – em esquálidos arremedos dos projetos iniciais, que não obstante serviram para dar imensa visibilidade ao governo brasileiro. Sempre que se questionam as razões desse fracasso, a saída invariável dos responsáveis é culpar os próprios haitianos.

Nas fronteiras brasileiras não é diferente: nas vítimas de assaltos e estupros se veem potenciais criminosos e, nos que sucumbem a endemias amazônicas, possíveis vetores de “doenças haitianas”. A missão sanitária enviada há pouco à fronteira chegou com dois anos de atraso, tarde demais para Carmelite Baptiste, de 30 anos, que morreu de dengue, doença inexistente no Haiti. Aqui, o governo tenta repetir o que tem sido sua estratégia de maior sucesso no Haiti: blindar a opinião pública brasileira de informações fiáveis e negar aos haitianos a possibilidade de falarem por si. Se não tivessem sido impedidos de deixar o isolamento nas fronteiras amazônicas, já poderiam ter demonstrado como possuem sólida formação educacional, com curso secundário, técnico ou mesmo superior, dispostos a dar o melhor de si para enviar recursos a suas famílias no Haiti. Porém, acabaram por se transformar em personagens involuntários da farsesca tradição brasileira no trato dos estrangeiros: instituições e profissionais despreparados que recorrem à mitologia de um povo supostamente simpático e gentil aos que vêm de fora. Ora, a antropofagia pode ser agradável para quem devora, mas não para quem deve pagar o preço da assimilação. Assim, o universo institucional revive uma tradição nacional tão vetusta quanto infame: a do favorecimento da imigração, sim, mas com alta seletividade, ao longo de uma história em que aos negros estrangeiros só se abririam as portas enquanto chegassem pelos porões do cativeiro.

Omar Ribeiro Thomaz, antropólogo, é professor do IFCH/Unicamp, e Sebastião Nascimento, sociólogo, é pesquisador da Flensburg-Universität (Alemanha)

Imagens: Nicolas Vial, “Restructuration” e “Intégration”, ambas publicadas no Le Monde, 2007

Haitanos hoje, nós amanhã? – artigo de Foster Brown

Do IHU Notícias: “Existem mais de dez vezes mais brasileiros na Bolívia e cinqüenta vezes mais brasileiros no Paraguai do que haitianos aqui. Dentro de fluxos chegando ao Brasil, a diáspora haitiana é ainda pequena”, constata Foster Brown, geoquímico, pesquisador do Woods Hole, professor da Universidade Federal do Acre, cientista do Experimento de Grande Escala Biosfera Atmosfera na Amazonia (LBA) e membro da Iniciativa MAP de Direitos Humanos, em artigo publicado no Blog da Amazônia, 17-01-2012. E continua: “Em comparação, nos primeiros seis meses de 2011, mais de 300 mil portugueses regularizaram os seus passaportes para trabalhar no Brasil, mais de setenta vezes o número de haitianos que chegaram em 2011”. Leia aqui o texto integral do artigo.

Sobre o mesmo tema, leia ainda a entrevista de Rosita Milesi ao IHU, Brasil e os desafios da lei de migrações e a matéria Cólera no Haiti: ONU é alvo de duas queixas, do UOL Notícias, traduzido do Le Monde.