Pouco me importa a campanha eleitoral. Desta vez, o que me interessa nas barbaridades que foram ditas, semana passada, sobre a Bolívia, é o quanto elas pioraram a vida destas crianças aqui, que têm nome e endereço, embora nem todas tenham documentos. Vieram com a onda de imigração boliviana que chegou a São Paulo. Pesquisadores dizem que são duzentos mil bolivianos, 95% deles trabalhando em costurarias, muitos deles clandestinos e em regime de semi-escravidão. No projeto Educar para o mundo, convivemos, há um ano e meio, com alguns dos filhos dessas pessoas que estão tentando ganhar a vida no Brasil. Mesmo diante de nós, os bolivianos são discriminados por uma parte dos demais alunos, quase todos pobres, pardos ou negros, numa espécie de hierarquia entre discriminados, em que a xenofobia catapulta o estrangeiro ao final da escala do desprezo.
Às bobagens comumente vomitadas pelos candidatos às presidenciais somou-se, agora, algo mais profundo. Nos últimos anos, pessoas com cara de pobre, até de índio, têm chegado à Presidência de países sul-americanos. Para piorar a situação de José Serra, suas principais adversárias são duas mulheres, uma ex-guerrilheira, outra ecologista – aliás, alfabetizada aos 16 anos. Compreendo o seu desespero, e que, nele, cave ainda mais o próprio poço. Mas que não leve nossas crianças junto. A ignorância revelada por estas declarações é o melhor combustível para o preconceito. Só o que falta é o Brasil ficar tão xenófobo quanto o mundo desenvolvido que certos brutamontes sonham imitar (DV).
Veja aqui as fotos das atividades sobre o espaço público que realizamos com 140 crianças da Escola Infante D. Henrique, na última quarta-feira: http://br4.in/qxyzd Foi, sobretudo, um balanço da visita que eles fizeram à USP no dia 12 de maio.
No dia 18 de junho, na Sanfran, CAMI/SPM e IRI/USP organizam um seminário sobre o Estatuto do Estrangeiro, com apoio de ESF, FES, ANDHEP, COM e DPE. Apareçam!
Brasil‐Bolívia: Aproximação cooperativa ou acusação descabida?
As recentes declarações do presidenciável José Serra geraram furor na mídia e
trouxeram à tona um debate polêmico da política externa brasileira: a
integração latino‐americana. Entretanto, a relação Brasil‐Bolívia abrange
pautas estratégicas para o desenvolvimento nacional que vão muito além da
explícita antipatia do candidato tucano por nossos “hermanos”.
Gafe ou estratégia política? José Serra afirmou em entevista a uma rádio
carioca no final do último mês que o presidente boliviano é cúmplice do tráfico de cocaína. Em vinte e um de abril, Serra já havia caracterizado o Mercosul como uma
farsa. Porém, tal postura não convenceu nem mesmo seus apoiadores. Alguns dias
depois, o lúcido conservador Claudio Lembo (DEM) publicou um texto com o título “Diálogo na América do Sul deve servir de exemplo diplomático”, em que conclui “Os países sul americanos devem continuar a operar reuniões continuas de seus líderes
em organismos criados, neste espaço geográfico, com este objetivo. Nada de
agressões verbais”.
Uma insinuação de tal gravidade, apesar de soar como uma gafe política, não
deixa de sinalizar uma possível postura do candidato caso ganhe a presidência – postura que, para muitos, soa como um retrocesso em relação aos crescentes avanços latino‐americanos de integração regional.
A cooperação estratégica Brasil‐Bolívia se fortaleceu em idos de 1997 com o início da construção do gasoduto que liga os dois países, com 3.150 quilômetros de extensão. A relação comercial bilateral tem visto avanços anuais. Outra delicada questão que aproxima brasileiros e bolivianos reside no fato de que o Brasil é o principal destino de imigrantes bolivianos que, sem alternativa em seu país de origem, buscam os grandes centros urbanos brasileiros. Em tal contexto, declarações como a do presidenciável em relação à Bolívia servem para reforçar preconceitos já
existentes quanto aos imigrantes latino “pobres e indígenas”.
Ainda que a declaração de Serra seja política e moralmente condenável, ela também é falha do ponto de vista dos dados concretos. Conforme o último relatório do UNODC (United Nations Office on Drugs and Crime), de 2009, a Bolívia é apenas o terceiro cultivador de folha de coca, com cerca de 30,5 mil hectares plantados. Em primeiro lugar aparece a Colômbia (81 mil hectares), seguida do Peru (56 mil). Colômbia e Peru, portanto, cultivam 4,5 vezes mais folha de coca que a Bolívia. Embora o mesmo relatório registre em 2008 um ligeiro aumento das áreas cultivadas na Bolívia (6%), a atual área em seu território é significativamente inferior aos números da década de 1990.
Já o “CIA Factbook” menciona que a Colômbia é responsável pela “quase totalidade” da cocaína consumida nos EUA, e pela “grande maioria” da cocaína
consumida em outros mercados. Na realidade, a Bolívia nunca teve grande
capacidade de refino. Na cadeia da cocaína, ela é essencialmente um país primário‐
exportador e corredor de trânsito. O tráfico e o refino mundiais são oligopolizados pelos grandes cartéis colombianos. Assim, o percentual mencionado pelo candidato tucano, segundo o qual 90% da cocaína consumida no Brasil seria exportada pela Bolívia, não se sustenta em dados concretos.
A acusação do candidato de fato é descabida. Porém, em sua estratégia
política, ela não deixa de transparecer um método: ao acusar a Bolívia, atinge um
país “amigo” do atual governo, sem tocar nos maiores players do mercado global das
drogas. Se Serra estivesse atacando genuinamente o problema do narcotráfico -pauta que justificaria a criação de seu Ministério da Segurança Pública (MSP) – ,
acusaria também a Colômbia e o Peru.
A criação do MSP figura entre as principais propostas do candidato, que acusa o atual presidente de não dedicar a devida atenção à área de segurança pública, principalmente no que tange ao narcotráfico. Entretanto, em nove de março deste ano foi aprovado o projeto que dá poder de polícia para as Forças Armadas nas regiões de fronteiras – uma importante medida no patrulhamento de nossas fronteiras e no conseqüente combate ao narcotráfico.
Ao mesmo tempo em que critica os rumos da atual política externa, José Serra não apresenta uma proposta clara de mudança. Sem uma formulação alternativa, pode‐se vislumbrar a possibilidade de uma volta à política de alinhamento com os EUA e a priorização de relações bilaterais, marca do governo FHC. Segundo o próprio Cláudio Lembo (sobre quem não pode pairar nenhuma acusação de esquerdismo), a aproximação com países sul‐americanos é um avanço histórico na geopolítica da região – algo de que o candidato tucano, sem maiores justificativas, parece discordar.