O “Ilegal” e o “Clandestino”: A Desumanização do Imigrante

Nos movimentos pelos direitos dos imigrantes, é muito comum ouvir críticas relativas ao uso da expressão “imigrante ilegal” ou “clandestino” ao se referir a pessoas sem documentos ou em situação irregular no país. Para quem está fora da discussão ou acaba de tomar contato com o tema, parece uma questão boba, irrelevante. Os movimentos, por sua vez, respondem que se trata de “criminalização da imigração”, acrescentando ainda que, no Brasil, a imigração não documentada é uma infração administrativa e não penal. Essa argumentação dificilmente convence: para aqueles que não estão imersos no debate, a questão é simples – se não vieram de acordo com a lei, são ilegais.

Em uma oficina do Educar com mediadores da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo, passamos quase meia hora discutindo uma questão terminológica. “É só uma palavra, todo mundo usa!” “Mas não está seguindo a lei! É ilegal!” “Se não é ilegal, é o que?” Para que tanto esforço para discutir uma palavra, uma questão abstrata, aparentemente inofensiva?

 

O “Ilegal” como justificativa para a negação de direitos

Para ativistas de movimentos sociais ou estudantes de ciências sociais, dar centralidade a palavras usadas em uma discussão não parece tão absurdo – desde Foucault, é difícil negar a relação entre linguagem e política. Mas não seria um salto muito grande relacionar tragédias recorrentes como as de Lampedusa ao mero uso de um adjetivo? Como se dá essa passagem?

Nossa sociedade tende a olhar para o Direito não como um fenômeno social, fruto de uma história e de discussões políticas, mas como algo absoluto, expressão cabal da Justiça. O desvio da norma é visto automaticamente como injusto, uma ameaça à “ordem e a paz social”. Em nome de sua auto-proteção, a sociedade justifica qualquer tipo de reação, mesmo as mais violentas. A ilegalidade de uma ação faz com que o sujeito perca suas reivindicações a direitos geralmente consagrados e reconhecidos a todos. Direitos humanos? Apenas para humanos direitos.

Esquecemos qualquer traço de individualidade da pessoa, apagamos suas histórias pessoais e motivações – pouco importa se alguém roubou para comprar comida, sustentar um vício ou conseguir um tênis novo: trata-se de um bandido. E bandido bom é bandido morto. Quando falamos do “imigrante ilegal”, não é diferente. O foco no critério da legalidade esconde questões muito mais importantes – o que levou a pessoa a migrar? Que condições enfrentou para chegar aqui? Foi trazida por “coiotes”? Trata-se de uma vítima de tráfico humano? Tudo isso é indiferente – quando associado à ilegalidade, esquece-se todo o resto, já não importa se todo ser humano tem direito à saúde, educação ou uma vida digna: o imigrante é desumanizado.

 

Campanha promovida pelo governo de David Cameron em 2013, banida pelo uso de slogans racistas e xenófobos

Responsabilidade de Proteger?

A comparação talvez ainda pareça exagerada. Dificilmente alguém (exceto por alguns fanáticos) defenderia a pena de morte para imigrantes em situação irregular. Quando muito, defende-se a deportação ou a prisão. Em alguns casos, como na Inglaterra, são feitas campanhas de terror, tentando promover um retorno “voluntário” para que o Estado não tenha que arcar com os custos da deportação

No entanto, quando vemos tragédias recorrentes em lugares como Lampedusa e Malta e vemos países se recusando a prestar assistência a imigrantes deixados à deriva em barcos precários, será que não podemos falar de uma espécie de condenação à morte por inação? Como podemos ignorar que tantos são deixados para morrer nos mares e em outras fronteiras apenas por serem estrangeiros sem documentos? Diz-se que em casos de sistemático abuso de direitos humanos, a comunidade internacional teria uma “responsabilidade de proteger” os indivíduos. No entanto, milhares de pessoas que fogem de perseguições e de guerras, como ocorre com a população da Síria, têm seu refúgio negado, sua viagem dificultada e seus direitos negados pelos mesmos países que defendem intervenções em sua proteção. Será que a falta de documentação no momento da entrada de um imigrante justifica a negação de direitos garantidos a todo ser humano? Por ser ilegal, deixa o imigrante de ser humano?

Apesar disso, governos como os do Reino Unido e da Austrália não parecem ter constrangimentos ao defender que operações de resgate devem ser interrompidas por incentivarem novas viagens. De certa forma, é como recusar socorro a vítimas de acidentes nos quais o motorista estava embriagado para não incentivar a direção sob efeitos do álcool. As consequências são trágicas: apenas entre janeiro e setembro de 2014, a OIM estima que ao menos 4.077 migrantes morreram tentando chegar a seus destinos, 3.072 destes tentando cruzar o Mediterrâneo. 4.077 cujas vidas foram apagadas sob o rótulo da ilegalidade, e outras tantas mais cujo acesso a direitos essenciais como saúde e educação são também negados por serem “clandestinos”.

 

Nenhum ser humano é ilegal

Tratar o imigrante como “ilegal” e “clandestino” faz com que tenhamos com relação a ele o mesmo tipo de reação que adotamos em relação a crimes e violações da lei. É isso que chamamos de “criminalização da migração”: passa-se a tratar o imigrante como um delinquente e a imigração como um problema que deve ser combatido, fazendo-se analogias com o narcotráfico e outros tipos de atividade criminosa. Com isso, apaga-se a dimensão dos direitos internacionalmente reconhecidos dos imigrantes – e de qualquer pessoa. É por isso que desde a década de 1970 a ONU considera a expressão “imigrante ilegal” como desumanizadora e defende em seu lugar o uso de palavras como “indocumentados” ou “irregulares”.

Talvez tudo ainda pareça um exagero ou uma discussão desnecessária. É evidente que a questão da imigração e da negação de direitos vai muito mais além de expressões como “ilegal” ou “clandestino”. Em todo caso, não custa nada abandonar o termo “ilegal” – afinal, é só uma palavra.

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